Conto de um dia
Ouça-me bem, amor
Preste atenção, o mundo é um moinho
Vai triturar teus sonhos, tão mesquinho
Vai reduzir as ilusões a pó
Preste atenção, querida
Preste atenção, querida
De cada amor tu herdarás só o cinismo
Quando notares estás à beira do abismo
Abismo que cavaste com os teus pés
(Cartola)
Olho no relógio, frio na barriga, passa marcha, diminui marcha, 5 minutos no semáforo, trânsito lento. Faltavam 15 minutos para ele desembarcar. Fui ao encontro de Léo no aeroporto, estava feliz, mas tinha o coração dividido. Sentia como se eu estivesse traindo a confiança de quem acreditara na minha insistência: "somos amigos". Mas em sentimento eu sempre soube que éramos mais, quantas despedidas tivemos, e nenhuma delas me pareceu assim, de fato.
Três anos ein? Passou rápido. Nem tanto, Eu tive saudades. Eu também.
Nos abraçamos e eu sentia alívio, culpa, ansiedade. Ele me falava dos namoricos que teve e eu reclamava da vida a dois e da recente ruptura de um longo relacionamento. Nada do que eu queria dizer, nem ouvir. Quando eu ia tomar coragem de falar, um beijo - e no lugar de paz, culpa. Tinha me esquecido que era bom, mas lembrei que já havia sido melhor.
Vamos tomar um chopp. Não aguento mais beber tanto Léo. A gente fica velho amiga. Como me apavorava aquela palavra: amiga. Ainda mais que a palavra Velha.
Enquanto a conversa fluía, em um barzinho rústico da cidade, tocava ao fundo, em som mecânico, Cartola: "Em cada esquina cai um pouco tua vida/Em pouco tempo não serás mais o que és/Ouça-me bem, amor/Preste atenção, o mundo é um moinho/Vai triturar teus sonhos, tão mesquinho/Vai reduzir as ilusões a pó..."
Em pouco tempo não será mais o que és..., cantarolei.
E eu já não era, ele não era. Nós nos perdemos. De repente a saudade dele e nossa foi se transformando em saudade minha. Saudade do amor que vivi, saudade da tranquilidade, da cia para ver filmes, fazer jantares, saudade dos vinhos, das ligações sem galhos, da construção. Foi então que percebi que em quase nenhuma daquelas saudades cabia ele, nada perto da profundidade da antiga relação.
Me despedi: Tenho que ir. Vamos dar uma volta? Não, preciso ir. E fui.
Chegando em casa, me desculpei. Obrigada pela cia, é sempre bom te ver. De imediato ele respondeu: Estarei sempre aqui amiga. Chorei.
Liguei para meu antigo companheiro, queria dizer tanta coisa. Não, eu me enganei. Não me diz que é tarde. Ele não atendeu.
No dia seguinte, uma mensagem: Mô (ainda não me acostumei a não chamá-la assim), não escutei o telefone ontem, estava no bar com uma amiga. Me liga mais tarde?
E passei o resto do dia feliz.
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